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Faculdade elege

"Compre o livro de fulano-importante-de-tal, tá na promoção, só 60 reais", disse o professor que almoça todo dia um prato de comida nesse valor. Não critico o prato de comida de 60 reais, cada um come o que tem condição de pagar pra comer. E certamente esse professor já passou por poucas e boas pra poder chegar hoje e pagar 60 por almoço. Cada um sabe de suas batalhas, e todas elas são válidas. Mas a questão é que tem aluno-zé-ruela-de-tal que consegue com os 60 reais do livro almoçar por 24 dias no restaurante popular por R$2,50 o prato+suco+sobremesa (paçoquinha ou doce de banana). E às vezes o aluno-zé-ruela-de-tal não pode comprar o livro porque se comprar vai ficar, literalmente, sem os 24 dias de almoço. Isso quando cada professor de cada matéria indica livros de 60 reais como indispensáveis e imperdíveis... Que dor no coração de não poder nem se interessar em comprar um pedaço de papel tão valioso daqueles. Ah mas tem o xerox, 15 centavos a impressão... E no fim do mês você vai fazer as contas e já foram 70 reais do seu orçamento, só com pedaços de papel que não fizeram a menor diferença nas aulas e que só vão servir de rascunho nos próximos semestres. Sem falar do ônibus. Porque tem aluno que junta dinheiro pra comprar uma bicicleta pra conseguir destinar o dinheiro a algo mais importante, ou vai a pé mesmo, porque não tem dinheiro pra academia e ao mesmo tempo que vai aos lugares de graça ainda consegue manter o colesterol em níveis razoáveis com a caminhada. "Ah mas é imperdível, um livro é pra vida toda e, além do mais, se você for realmente comprar fora dessa oportunidade vai ser o dobro do preço, você vai se arrepender". E o aluno sabe o valor de um livro, sabe como ele pode fazer a diferença como material de estudo e trabalho. E se arrepende de não conseguir ficar 24 dias sem almoço pra poder bancar um negócio de futuro. Mas ao mesmo tempo ele só pode se preocupar com o almoço de hoje, amanhã ele vê um jeito de comer. Funciona um dia de cada vez a vida de quem vive com uns poucos trocados furados. "Ah mas esses alunos-zé-ruela-de-tal não são TÃO coitados assim!" Claro que não! Alguns lêem todos os editais de auxílio universitário possíveis, providenciam pastas e pastas de documentos caros pra poder comprovar a situação financeira e tentar dar um pouco de folga à família que tem orçamento limitado pra bancar um ou mais filhos estudando fora. E, como nem todos são contemplados com todos os auxílios, e mesmo se contemplados ainda passam uns perrengues - já que auxílio é só pra auxiliar mesmo, não pagar todas as contas - tudo bem!, vão fazer uma faxina em casa de ricaço no final de semana, trabalham de garçom a noite no meio de semana pra tirar uns trocados a mais. E no outro dia estão na sala de aula como todos os outros, às vezes até melhor, mais bem humorados, respeitosos com os professores, com sede de aprendizado, prestando atenção! Tem também os que fazem curso noturno pra poder trabalhar de dia, afinal, um salário mínimo ajuda demais a pagar as contas e se manter, já que os alunos assalariados têm o "privilégio" de ter um trabalho e não depender da boa vontade da burocracia da faculdade pra poder estudar. E aí, realmente, formam devido ao "o que você faz de meia-noite às seis", como se ninguém precisasse dormir né, afinal, o café foi inventado por qual razão senão essa? E não reclamam, são os que menos reclamam. São os que nunca reclamam! Têm também aqueles que não conseguem viver essa rotina tripla e abandonam a faculdade com o objetivo de trabalhar, tentar juntar um dinheiro, e quem sabe daqui uns anos conseguir voltar a estudar. Têm aqueles que acabam voltando pra casa dos pais e arrumam um emprego de cidade pequena mesmo, afinal, nunca deveriam ter ousado sair de lá, bem que a mãe avisou. "Mas como esses mesmos alunos têm dinheiro pra ir em festa, beber no fim de semana e não podem comprar UM livro?" Porque ninguém é de ferro, porque não dá pra viver 24h por dia 7 dias da semana em prol da faculdade. Se não puder sair pra comer um pastel e tomar uma cerveja no domingo fica impraticável a vida de estudante e trabalhador o resto da semana. E sim, às vezes a cerveja é mais importante do que aquele xerox inútil que nunca vai ser usado em aula nem vai ser lido em casa. Se não puder tirar um tempo pra relaxar, vai adoecer e ficar mais estressado do que já é, vai cair cabelo, ter crises de pânico, úlceras nervosas, gastrites, alergias, problemas que não podem acontecer, já que não dá pra parar, porque se parar a vida desanda mais. E provavelmente esses alunos que você vê por aí esbanjando em festa de república toda semana de quinta a domingo são os que não precisam se preocupar com dinheiro do jeito que os alunos que realmente são responsáveis pelo próprio sustento se preocupam. "Ah, mas você está exagerando, sendo dramática." Isso porque eu não citei aqueles que vão pra aula sem tomar café, porque os pais não tiveram condições de enviar uns trocados e a bolsa foi embora com o aluguel. Talvez esses também entrem no grupo dos que fazem, no máximo, três refeições por dia, quando têm sorte! E você nem sabe, nem nunca vai saber... Viver assim não é vergonhoso, as pessoas não chegaram ao ponto de roubar e matar, não querem lesar ninguém, mas elas também não querem expor a situação de suas famílias... Tudo bem o professor gostar daquele aluno que pode sair do sudeste e ir aos congressos no Pará viajando de avião, apreciar o aluno que demonstrou TANTO interesse e comprou todos os livros originais da lista e os que não conseguiu comprar fez o xerox. Tudo bem o aluno vez ou outra poder bancar os 60 reais de comida só pra acompanhar um congressista importante, tirar dúvidas, trocar ideias e contatos. Tudo bem o professor achar que aquele livro vai mudar a vida dos alunos, e realmente é preciso mostrar material, conteúdo, o que estão publicando por aí, apesar de ser ligeiramente humilhante pro aluno ter de se mostrar desinteressado pra esconder que não pode comprar. E os alunos mais interessados (provavelmente porque podem bancar o interesse), mais inteligentes (provavelmente porque estudaram em escolas melhores), mais talentosos (provavelmente porque têm tempo pra isso), mais esforçados, mais [coloque aqui qualquer outra qualidade de um bom aluno, levando em conta que provavelmente ele teve alguma oportunidade a mais do que os outros], são eleitos pela faculdade, apesar do processo de democratização, apesar das cotas, apesar de todos os esforços das reitorias pra amparar os menos favorecidos, apesar das inúmeras tentativas de dar chances e oportunidades, apesar de todos os esforços pessoais e institucionais. Chega um momento, cedo ou tarde, que a faculdade seleciona, como na teoria darwiniana, as espécies mais fortes, que são mais fortes porque sempre foram mais nutridas, e, por mais oportunidades, são mais adaptáveis. Essas espécies sobrevivem, com mais oportunidades, mais disposição pra se adaptar, mais força pra continuar. Tudo bem que a faculdade é dura pra todo mundo, é difícil mesmo, o caminho é árduo e cada um passa por incontáveis problemas e luta inúmeras batalhas. Mas pra alguns, sabe-se lá quantos indivíduos sofrem assim no anonimato, a faculdade os elege a ter uma vida acadêmica excruciante. _ 10 de Fevereiro de 2018 _

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