top of page

A culpa é dos planetas


Ficção que remete a realidade | Foto: Deborah Vieira

Como seria se você vivesse em uma sociedade separada por signos? A divisão social não mais se daria por questões de raça/etnia, gênero, classe, religião e tantas outras variáveis, a divisão se daria apenas pela posição dos astros na hora do seu nascimento, fato suficiente para te identificar e traçar o seu presente e futuro. Muita maluquice? Creio que não... "O assassino do zodíaco", a distopia criada por Sam Wilson, tem muito de realidade.

Capricornianos são bem sucedidos, mandados para as melhores universidades. Arianos são considerados violentos e banidos para guetos. Taurinos são seguros e compõem cargos na polícia. Cada signo tem sua característica principal determinante para a posição social do indivíduo. No meio dessa sociedade desigual e violenta, assassinatos em série começam a desafiar a ordem. Para resolvê-los, o detetive Burton é chamado e, com a ajuda de Lindi Childs, astróloga, tenta desvendar o mistério, antecipar as ações do assassino e enfim pegá-lo.

O enredo é envolvente e a cada capítulo o autor nos dá pistas - nos confunde principalmente - das motivações para os crimes violentos ligados às questões astrológicas. Tentei adivinhar quem era o assassino mil vezes e, até certa altura, errei todas as apostas. Confesso que passei até a torcer pelo assassino e que seu protesto (mesmo que sangrento e de caráter justiceiro) fosse realmente ouvido, para que os verdadeiros assassinos da sociedade fossem presos e recebessem a justiça que merecem.

Aos poucos, vamos desvelando uma sociedade injusta, determinista e, por incrível que pareça, nem tão distante da nossa em inúmeros aspectos. Aqui no mundo real assumimos identidades e até estigmas de acordo com nossa aparência, cor, crença, sexualidade, cultura e modos de perceber o mundo. Somos a todo tempo perpassados por diversos tipos de opressão que não passam de construções sociais enraizadas e tomadas como "natural", "correta", "normal", "inquestionável" ou "diferente", "estranha", "desviante".

Somos julgados por termos tatuagens, acreditarmos em certas coisas ou não acreditarmos em nada. Nosso tom de pele ainda é usado para nos diminuir ou favorecer. Nosso gênero nos distingue, exclui e cria ideias mentais a partir de diferenças meramente biológicas. A periferia sofre com a violência, vinda até mesmo de pessoas que deveriam resguardar a segurança.

O que nos difere, classifica e qualifica, mesmo que de forma muito sutil e velada, e é também o que influencia no presente e apresenta chances futuras.

Então, como seria se todos os fatores socialmente aceitos e socialmente constituídos fossem realmente exteriores a nós? Afinal, não se pode questionar a posição dos astros no cosmos (e nem mudá-la)... Assim como atualmente não podemos sequer questionar dogmas religiosos. No livro, tudo que o indivíduo é, a identidade do sujeito e seus comportamentos, são determinados pelo signo, bem como a possibilidade de um bom emprego, bem estar social, etc etc. Para evitar sofrimento, as famílias recorrem aos mais diferentes tipos de recursos, como alterar a data de nascimento do filho para que ele não seja discriminado ou até mesmo se mudar para outra região da cidade, chegam ao absurdo de levarem as crianças "diferentes" para escolas capazes de fazê-las "aceitar" e se encaixar no que é específico do seu signo de nascimento. Tudo em favor da "ordem".

O livro é mais do que literatura: é também uma crítica social e o próprio autor, em entrevista, garante que essa história não seria possível se ele não tivesse morado na África do Sul e presenciado todas as cicatrizes deixadas pelos anos de Apartheid. Uma inspiração real com toques de ficção são capazes de fazer o leitor refletir sobre a construção da nossa sociedade, dos costumes, cultura e esteriótipos.

Com a narrativa de "O assassino do zodíaco" pude sentir que nem sempre quem é condenado por um ato desesperado de tentativa de mudança deve ser julgado como o verdadeiro réu. Na verdade, quem mantém um sistema injusto e desigual através de justificativas embasadas em criações humanas sedentas por poder é que são os verdadeiros assassinos da sociedade, das pessoas, da diversidade.

Enquanto amante da literatura e eterna aprendiz em Comunicação, continuo a traças paralelos entre as "verdades" da realidade e as semelhanças com a ficção. Afinal, a responsabilidade é sempre jogada para o exterior a nós, o divino, o intocável, o "inquestionável". Mas será que a realidade é mesmo culpa dos planetas?

 

Leia a entrevista com o autor Sam Wilson e conheça um pouco mais sobre seu trabalho e inspirações aqui!

Posts Relacionados

Ver tudo

Deserto

Um pouco de nós...

Escrever, expor sentimentos e ideias que acumulam em nossa mente torna-se então uma forma de resistir e aliviar as tensões. A partir disso criamos o Insônia Produtiva e compartilhamos ela com você, porque uma noite escura pode ser iluminada por uma constelação de ideias.

Bem-vindo a Insônia Produtiva!

SIGA:
  • Facebook Vintage Stamp
POSTS RECENTES:
PROCURE POR TAGS:
Nenhum tag.
bottom of page